segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

POR TRÁS DO TROTE UNIVERSITÁRIO


Em todos os anos, em qualquer início de semestre, ele está lá. Sempre a mesma farra e as mesmas brincadeiras de sempre. Mais ou menos sádico. Em muitos casos, mais grosseiro e grotesco do que nos outros anos. Isso é, se alguém não fizer nada. Pois aí está ele, o senhor trote.

O trote é conhecido como um rito de iniciação ao entrar na faculdade. É feito e aplicado pelos alunos mais velhos e denominados ” veteranos ” sobre os alunos recém-chegados conhecidos como ” calouros ( as ) ” ou simplesmente ” Bixo ( ete )” . Esse tal rito de iniciação ocorre desde muito antes das faculdades brasileiras existirem. Vem lá da Europa e de suas primeiras Universidades na Idade Média.
Os calouros eram separados dos veteranos e por razões de higiene, tinham seus cabelos raspados e suas roupas queimadas. Mas após isso, essas tais medidas higiênicas viraram algo de praxe dos trotes da época e até dos atuais, com os calouros sendo obrigados também  a comer fezes e a beber urina. Tudo isso para de alguma forma, o calouro ser ” domesticado ” pelo veterano. Pudera, já que a palavra trote vem de um certo andar do cavalo que se situa entre o passo mais lento e o galope, que é o mais rápido. Em outras palavras, o trote significa domesticar o cavalo e ensiná-lo ( até por formas violentas ) a dar um passo mais constante. Faz sentido agora o fato do calouro ser chamado de bixo, mesmo sendo escrito da forma errada?
Em muitos trotes, além dos já tradicionais corte de cabelo, tinta pelo corpo e roupas rasgadas ou queimadas, vemos de tudo. Desde se embebedar muito até brincadeiras de conotação sexual, especialmente as ” bixetes ” sofrem este último. Até pior elas sofrem, pois em Universidades respeitadas daqui, já foram vistas obrigadas a ficarem nuas. Uma amiga minha, do mesmo curso que o meu, me contou que o trote dela foi ter que pedir esmola para uns carros próximo do Estádio do Pacaembu e para conseguir dinheiro, ela literalmente ” sensualizou “. Mas pelo fato de ser magrinha, não conseguiu muita coisa. Já uma menina do lado, de corpo mais ” bem dotado “, conseguiu arrecadar tudo o que os veteranos queriam em menos tempo. Dinheiro para comprar bebida alcoólica obviamente. E uns menores de idade bebendo. Aí uns vão me dizer: 17 anos, ele pode beber à vontade sim. Mas e se os veteranos mandassem ele roubar alguma coisa, o que me diriam? Não, ele não pode ser preso, só é um menor de idade! Além da redução da maioridade penal para os mais pobres, quereriam a redução da maioridade para ingerir bebidas alcoólicas apenas para seus filhos. Bem legal da parte de alguns pais de classe média alta. Nem tão alta, mas sim.
Mas voltando ao assunto do trote, percebe-se nitidamente que além de machista, até mesmo as próprias mulheres obrigam as calouras a passarem por isso, ele é sádico, cruel em muitos casos e demonstra que há uma clara hierarquia na faculdade, tanto como há na vida ou no sistema sociopolítico em que vivemos. Em suma, os calouros não são ninguém perto dos veteranos. Algo quase que militar funciona dentro das Universidades. Até mesmo os militares tem seu próprio trote ( melhor nem imaginar como é ). Inconscientemente, o calouro que irá se tornar veterano algum tempo depois, quer uma ” vingança ” pelo que lhe fizeram no dia do trote. Ele vai descontar sua raiva no veterano? Não, irá descontar no próximo calouro. Algo sucessivo e que de alguma maneira passa de geração em geração. E esse ódio, que vem lá atrás, desde a Idade Média, passando por São Paulo e Recife e chegando até hoje nas universidades atuais, prevalece. Muitos vão dizer que não há ódio e que há sim alegria e diversão. Mas inconscientemente há.
Quando digo para alguns colegas que não gosto de trote e que considero-o algo que desune os alunos de alguma forma e, definindo-o como algo que não deixa relações de igualdade, eles simplesmente me respondem duas coisas. Primeiro de tudo, dizem que o trote é uma diversão e que nele podemos arranjar um menina para ficar, amigos novos e dentre outros. Segundo, falam que participa quem quer e fim de papo. No segundo item, posso até concordar. E para pessoas como eu, que não foram ao trote? Simples, serei um eterno ” bixo ” e sofrerei com as ” brincadeiras ” caso eu vá para um deles. E elas podem ser até piores do que as aplicadas nos novos estudantes. Até concordo que vai quem quer, pois a escolha de ir é sua. Mas mesmo para quem for, sofrerá alguns abusos. O calouro espera no trote algo divertido e que marque pela vida inteira. Mas em muitos casos, o feitiço vira contra o feiticeiro e experiências nada legais irão permanecer. Claro que isso será no âmbito pessoal. Pois socialmente, mesmo que a pessoa aceite o trote, esta pessoa está sofrendo um grande abuso que mal sabe ela que sofre. É como o trabalhador alienado que pensa estar bem da vida e que não há nada de errado.  Aqueles que estão na classe mais alta irão abusar da pessoa mais baixa classe, para seu prazer pessoal e para se vingar do que sofreram. Resumindo: mesmo que a pessoa goste do trote, ou não, sofreu abuso por pessoas que se diziam ” superioras “. Superioras só em sonhos, pois apenas repetem a ignorância achando que isso será bom. Mas nem sempre será bom.
Nos último tempos, a maioria das universidades proibiu o trote dentro de seus campus. Uma boa ideia, mas não bastou para  o trote migrar para as  ruas. E longe das Universidades, ele se torna ainda mais violento e perigoso do que seria dentro dos campus. Quase todos os anos, vemos alguma polêmica nova nestes trotes. Desde trotes sexualmente violentos até racismo ou trotes que mais torturam do que divertem até casos de mortes. O caso mais emblemático de morte em trote foi do estudante de medicina Edson Tsung Chi Hsueh em 1999, na Faculdade de Medicina da Usp. Ele foi forçado a nadar em uma piscina sem saber nadar. Foi encontrado morto no dia seguinte. E os responsáveis por isso? Inocentados por falta de provas. Melhor eu nem ir tão fundo para não me perder nisto aqui, afinal justiça só serve para punir os mais pobres. Mas isso fica para outro texto.
O trote em si, não se trata de iguais. Trata-se de hierarquia aonde estudantes mais velhos e ditos mais experientes, os veteranos, acham-se no direito de fazer o que bem entender dos alunos novatos. Veterano este que, para dizer a verdade, muitas vezes é um frustrado. Meu professor de cálculo falou sobre o trote que sofreu, certa vez. Disse que enquanto ele se formou em 4 anos como manda o currículo do curso de matemática, o veterano que lhe aplicou o trote ainda estava no curso. ou talvez já tinha saído dele. Nesse caso, percebe-se que nem sempre o veterano é melhor academicamente do que o calouro que está entrando. O veterano, se quisesse mostrar que realmente é o melhor, deveria dar pelo menos uma “aula-trote” bem dada. Ou no decorrer do curso, mostrar sobre esportes e ajudar os mais necessitados do curso sobre as matérias. Claro, não dá para exigir de todos ou ficar nesta coisa chata de estudos. Mas a relação veterano-calouro poderia ser menos sádica e hierarquizada para ser ais humana e igualitária.
Jesus disse: ” Amai-vos a todos assim como eu vos amei ” . A Constituição brasileira nos diz que todos somos iguais perante a lei. Iguais, mas com diversos poréns. E um destes poréns é  trote, pois demonstra que quem entra não será igual com quem já está lá. E que é menos de alguém lá dentro. Por experiência própria, não fui ao trote. Fui à aula. Tinha pouco menos de 10 pessoas na sala. Enquanto isso, milhares estavam pelas ruas se ” divertindo “. Entrei já sabendo que não serei melhor que o veterano. E que nem sou melhor que ele. Mas que sendo honesto nos estudos e academicamente evoluindo, posso ser melhor que o veterano que pouco faz e só espera o dia trote para ser alguém lá dentro. Posso ter conhecido bem menos gente no trote, já que muitos participam para não se sentirem excluídos ao entrar no círculo universitário. Mas ao menos, não me submeti a humilhação para ser conhecido. Humilhação pessoal e social. Quis conhecer pouco a pouco cada um para ter uma relação melhor com todos. Não ter uma relação hierarquizada e que se baseia em festa-bebida-matinê. Sobretudo, todos somos iguais. Então para que eu me submeteria ao trote que visa coagir? E para que motivo eu iria coagir meus iguais enquanto precisam de ajuda para entrar num novo mundo que é a faculdade? Sempre terá casos diferentes, pois no trote posso conhecer alguém legal que talvez eu não conheceria fora dele. Mas sentiria o peso de ter sido coagido e humilhado em público.
Cada trote depende do curso. Quanto mais a média de idade do curso for mais baixa, o trote tende a ser mais violento e com brincadeira um tanto ultrajantes. Claro, o jovem de 17 até 20 anos saiu da casa dos pais e sempre quer novas experiências, sejam elas boas ou ruins. Mas quem dera que o trote fosse como o de meu ex-professor de filosofia do Ensino Médio, que consistiu em jogar baralho. Poderia ter sido um jogo amistoso de futebol, como o que joguei na recepção solidária da minha faculdade. Perdi do veterano, mas foi bem bacana. Algumas universidade em parceria com os Centros Acadêmicos fazem esta recepção mais acalorada com os calouros. Também há os chamados ” Trotes Solidários “, que, embora o nome seja não muito legal por causa da palavra ” Trote “, pode ser uma solução legal. Doação de sangue, trabalho voluntário ou até mesmo plantar árvores, podem mostrar ainda que o papel de quem está na Universidade é de mudar o mundo. Não apenas farrear durante o curso e depois apenas ganhar dinheiro sem nenhum compromisso com a vida. Mas o trote na rua ainda permanece vivo? Quando ele irá acabar? Dificilmente ele irá terminar. Mas apesar disso, quando a hierarquia acabar e os homens forem realmente iguais, sejam eles mais experientes ou novato, talvez o trote seja apenas um jogo de baralho.
Minha recomendação é: não ir ao trote. Mas quem leu tudo e desejar ir, a porta estará aberta. Mas não se arrependa depois.

Obs: O texto foi escrito para o blog de um amigo meu. O link para o texto neste blog e para você conhecer o blog é: http://projetoperspectivas.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário